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sábado, 14 de dezembro de 2013

Afinal, Kira estava certo?

 
    O anime Death Note faz sucesso em várias partes do mundo. A incessante busca de L - um detetive jovem e com uma mente genial - e de Light Yagami - jovem brilhante, que adota o codinome de Kira - por justiça deixa o anime carregado de reflexões e de emoção.
    Light é um jovem que vivia uma vida de tédio, até que um dia encontra, no quintal de sua escola, um caderno - o Death Note - que promete matar aquele que tiver seu nome escrito ali. Ele então começa a escrever no caderno o nome de criminosos espalhados pelo mundo inteiro, matando milhares de pessoas, mas reduzindo os índices de violência e conseguindo trazer, mesmo que não integralmente, uma relativa "paz mundial".
    Já L é um detetive famoso (embora todos desconheçam sua identidade), que tem reconhecimento por resolver todos os casos que lhe são propostos. L é então encarregado de descobrir quem está matando tantas pessoas mundo a fora, e o próprio personagem se opõe à ação de Kira, pois acredita que a paz não pode ser trazida por meio da violência.
   Quem assiste ao anime geralmente escolhe um lado: ou é a favor de Kira, o antagonista, ou de L, o detetive que está tentando resolver o caso. Mas e então, qual dos dois está certo?
    Bom, o livro "Justiça - O que é fazer a coisa certa" (Justice - What's the right thing to do?), best-seller do autor norte-americano Michael Sandel, traz algumas concepções sobre justiça, e sobre diferentes modos de pensar sobre o que é certo ou errado. Pois bem, pretendo apresentar duas concepções: primeiro a concepção utilitarista, pela qual Kira estaria certo, e segundo, a concepção de Aristóteles, pela qual L estaria provavelmente certo.  Também gostaria de, no final, apresentar minha opinião pessoal a respeito. Vamos lá.
   
   O princípio da máxima felicidade ou utilitarismo é uma concepção pela qual a soma das satisfações deve ser maior do que a soma de sofrimento. Em outras palavras: o objetivo é maximizar a felicidade social, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. De acordo com o inglês Jeremy Bentham, a coisa certa a fazer é aquela que maximizará a utilidade. Como "utilidade" ele define qualquer coisa que produza prazer ou felicidade e que evite dor e sofrimento.
    Portanto, partindo do ponto de vista de Bentham, Kira estaria certo. As mortes promovidas por ele trazem felicidade a um maior número de pessoas e, assim, Kira age com coerência ao tentar trazer paz à maioria, mesmo que isso implique na morte de certo número de pessoas. O que importa nesse caso é conseguir um maior número de pessoas felizes, o que, no caso, o personagem consegue fazer.
    Bom, vamos ao ponto de vista do filósofo Aristóteles. Para ele, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a cada um o que lhe é devido. Seu modo de raciocinar a partir do propósito de um bem para a devida alocação desse bem é um raciocínio teleológico. Aristóteles argumenta que, para determinar a justa distribuição de um bem, temos que procurar o télos, ou o propósito do bem que está sendo distribuído.
    Portanto, qual o télos - ou propósito - do personagem Kira e de suas ações? Essa seria provavelmente a pergunta que Aristóteles faria. No anime, Light afirma que pretende criar um "Novo Mundo", um mundo onde ele seja deus e onde reine a paz mundial.
    Além de (certamente) criticar o propósito de Kira, por atender em boa parte a anseios individuais do personagem, Aristóteles também afirma que o propósito da pólis (comparativamente, o Estado) é dar aos cidadãos uma vida boa. Além disso, Aristóteles afirma que a política deve orientar as ações humanas e suas capacidades, ajudando cada um a se desenvolver e a viver uma vida digna. Para ele, o ser humano deve ser conduzido à virtuosidade. Assim, é muito provável que Aristóteles se manifestasse a favor do personagem L ou, ao menos, se opusesse a Kira.
 
    Gostaria, para finalizar, de dar a minha opinião pessoal a respeito. Se eu tivesse que escolher um dos lados, ficaria ao lado de L. Ninguém tem o direito de decidir o que é certo ou errado sozinho, ignorando o modo de pensar de todos os outros indivíduos, os quais fazem parte da mesma sociedade da qual Light fazia parte. Além disso, o modo de agir do estudante ignorava os direitos individuais daqueles que ele executava. Não acredito na violação dos direitos individuais como a melhor maneira de promover a justiça. O curioso é que, mesmo acreditando que Kira estava errado, torci pela sua vitória durante todo o anime. Por que será que, vez por outra, torcemos para o lado errado ou para o lado dos vilões? Bom, isso já é outra história. Mas para você, que leu esse artigo, "Kira é a justiça"?
 
 

Bauman e uma reflexão acerca do patriotismo heroico/ Michael Moore e "Roger & Eu"

 
   No seu livro "Vida Líquida", o sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz uma reflexão sobre o patriotismo e o envolvimento dos cidadãos com o seu país, como em situações de guerra, por exemplo.
   Para Bauman, a atual supremacia dos motores da economia da sociedade líquido-moderna sobre o poder do Estado é determinante para que as pessoas não se sintam mais tão ligadas ao sentimento de patriotismo pelas suas nações.
   No passado, durante o surgimento dos Estados-nações europeus, numa época em que reinava o poder monárquico e absoluto, o Estado tinha soberania integral e completa sobre tudo e todos. No entanto, a autoridade dos Estados atuais é muita das vezes derrotada por forças globais, como pela vontade de empresas e conglomerados internacionais.
    Não sendo mais responsável por promover segurança, por controlar a economia e por vigiar a tudo e a todos, o Estado passa a ser visto de maneira diferente por seus súditos. Menos promessas por parte dos governos significam menor necessidade de dedicação patriótica e mobilização espiritual pelos membros de um país. Surgem então os pequenos exércitos profissionais particulares, onde não há mais espaço para o herói nacional de outrora.
   Nas palavras de Bauman: "Os consumidores satisfeitos, ocupados em cuidar de seus interesses particulares, vão esplendidamente bem, obrigado...''.

   A reflexão de Bauman transporta ao exemplo que ocorreu na cidade de Flynt, registrado no filme "Roger e Eu", de Michael Moore. No filme, mostra-se como boa parte da população de uma cidade, que trabalhava na empresa General Motors, perde seu emprego após a companhia decidir mudar suas operações para o México, onde os custos de produção são obviamente menores. 
   Após a saída da General Motors da cidade, Flynt enfrenta uma situação aterradora, pois boa parte dos moradores dependia dos empregos da fábrica. Com a saída da mesma da cidade, a população se vê abandonada à própria sorte, tendo de enfrentar o caos e o desemprego. Durante todo o filme, o irreverente Michael Moore tenta conseguir uma entrevista com o presidente da General Motors.